Intensidades. Parece ser este o nexo que reúne os trabalhos apresentados nesta Conexão Nacional.
Ao contrário da extensão, cujas possibilidades de medir são imediatas (o metro, o palmo,
o pé, a braça, etc.), as coisas se complicam com as intensidades. Para começar, há muitas
delas: magnética, elétrica, energética, luminosa, sonora entre outras, mas aqui estamos falando
de intensidades subjetivas, impossíveis de serem medidas, ainda que plenamente perceptíveis.
Temos dificuldade até mesmo para descrever as situações intensas; faltam palavras. − Muito
forte, isso! Às vezes, é o que nos resta dizer. Exatamente porque não podemos contabilizar os
metros de intensidade de nosso amor ou da ira que nos consome, ou as quantas braças faltam
para transformar aquela dor em gozo (que o digam os ascetas). No entanto, mais do que a
extensão mensurável, é difícil nos equivocarmos na avaliação da intensidade, ou seja, de saber
o quanto esta ou aquela situação é dolorosamente intensa, prazerosamente intensa, repugnantemente
intensa ou apenas indiferente, intensidade zero. Isto porque se trata de uma vibração
que percorre o corpo, fazendo dele o suporte da percepção. O cérebro, ainda que parte desse
mesmo corpo, sobrevalorizado pelo iluminismo ocidental como lugar do pensamento e do
espírito por excelência, entra em cena a posteriori ou, quando muito, participa da percepção
devolvido a apenas um lugar entre outros, ao Corpo sem Órgãos de que nos falam Deleuze e
Guattari.
Em Europa, filme de Lars Von Trier de 1991, que trata do pós-guerra (segunda) na Alemanha,
encontramos um modo de por em relevo algumas intensidades, tornando-as ainda mais intensas
do que pareceriam ser ao expectador sem o engenhoso artifício: a película é toda em p&b
mas, em raros e cruciais momentos, a cor (especialmente os tons avermelhados) emerge como
se dela vazasse a contrapelo, na forma, por exemplo, do rubor que rapidamente colore o rosto
de Katharina (Barbara Sukowa), em contrariado esforço para esconder seus dois segredos: o
político e o amoroso.
Essa coloração extemporânea, que denuncia a emergência de intensidades, propõe uma situação
interessante para pensarmos a vida: de como ela só é suportável graças a essas colorações
intempestivas que invadem a existência − às vezes parcimoniosamente, às vezes, como enxurrada
− sempre marcada pela rotina, pelos gestos e atos repetitivos, pela vida ligada no automático.
As intensidades são prova de vida. Sejam elas trágicas, dolorosas, insuportáveis, sejam elas
extasiantes, epifânicas, amorosas, delicadas ou pacificadoras. Passaremos por elas, ou melhor,
seremos atravessados por elas, uns mais, outros menos. Com maior ou menor sorte teremos,
enfim, nossa cota de intensidades, como revelou-nos a sua, Proust, em seu Tempo Redescoberto.
Se há algo que podemos dizer da arte contemporânea (alguma arte, ao menos) é esse desafio
das intensidades. Dessa operação de criar situações (mais que obras) em que o rubor
nos sobe à face, em que uma vibração percorre o corpo, em que se produz um estado de vida
em oposição à catatonia das coisas mortas (não da morte pois esta, propriamente, parece ser
intensa), se valem as proposições estéticas e os trabalhos expostos neste encontro de quatro
artistas em Conexão Nacional.
Intensidades vertiginosas: o mundo como caderno de desenho
Adir Sodré é, sobretudo, desenhista, como foram os antigos viajantes naturalistas, mas de um
modo novo. Ao contrário dos primeiros, não se trata de desenhar verossimilmente a fauna
e a flora do mundo natural, como catalogação infinita, mas de tomar o mundo como página
branca e reinventar a criação.
Suas mãos pedem lápis, pedem caneta, pedem uma superfície lisa sobre a qual possa executar
uma dança ininterrupta, sem obstáculo de textura, sem atrito, de voluta em voluta, de linha
em linha, vertiginosamente, obsessivamente. Dessa dança nascem faunas-floras híbridas, não
naturais, contra-naturais, genitálias mistas macho-fêmeas, vaginas-flores carnívoras, frutostetas
intumescidas, passaralhos psicodélicos e outros seres dessa imageria fantástica e borbulhante.
Brotam da ponta do lápis como de uma cornucópia, numa profusão sexual de criação
e recriação de um mundo particular, pleno, sem espaço para o nada ou o indiferente, intenso,
sodresiano como só ele sabe ser.
Intensidades delicadas: o mundo como bordado e poema
Enquanto os desenhos de Adir emergem do papel feito geração espontânea, as palavras-bordados
de Flavia Vivacqua custam a sair. É outro o ritmo, são outras as sensações. Da vida em
tempo lento, cosida ponto a ponto, letra a letra da palavra que ela própria é poema. Do indizível,
tece Flavia com a paciência daquilo que tem o tempo do universo. Nesse trânsito entre linha
e letra, entre tessitura e escritura, entre bordado e poema, somos surpreendidos por saber-nos
ser aquele que trança a lã da vida, que traça/tece o texto singular de sua existência (com palavras
felizes e tristes), ao mesmo tempo em que somos linha, apenas, em uma complexa urdidura
na qual se entrelaçam tudo o que é vivo, na geração também espontânea das formas do
mundo que se repetem e se reinventam, autopoieticamente.
Intensidades de vizinhança: o mundo como ateliê de costura
Algo que os poetas sabem como ninguém é costurar palavras pelos sons, inventando pontes por sobre abismos de signos, antes estranhos entre si. Augusto de Campos costura em VIVA A VAIA imagem, sonoridade e sentidos. Ao modo de um poeta concretista, Gervane de Paula
constrói pontes, costura vizinhanças entre personagens e objetos, matérias e práticas de mundos distintos, abismos de natureza como a mulher e o espelho, o cabelo e o pente, o pente e o dente, a agulha e o pincel, a pintura e o vestido, o pintar e o coser...
As obras de Gervane costuram contiguidades de imagem, matéria e sentido como nos insólitos
jogos de palavras lavradas por poetas, fabricando pinturas-poemas, costuras-pinturas e outros experimentos.
Das cores de sua palheta matriz − vermelho e verde (complementares), branco e preto (excludentes)
− e das matérias que forjarão as proximidades − tela, tinta, tecido, lata, borracha e madeira – organiza-se o mundo deste ateliê de costura que tem na mulher vaidosa e no tuiuiú insistente seus personagens mais do que conhecidos, seus modelos, por assim dizer.
Corpo desmaterializado pelo vermelho; espelho buraco branco e pente-dente em preto de
mulher vaidosa. Afinal, qual é o pente que te penteia, nega?
Pela gola, tuiuiú sedento, bico apenas, mergulha em corpo-vestido de mulher, em direção ao
sul. Mas, quando a manga-tesoura se descola da tela, ganha volume e nome de vestido, pede a
quem o vê um corpo que o porte, qual parangolé. O artista, enfim, é um costurador.
Intensidades políticas: o mundo como diferença
Diferentemente do regime identitário que preconizava sujeitos reproduzindo-se ao infinito, favorece-nos o contemporâneo, com alguns prejuízos e sofrimentos certamente, o princípio da heterogênese da subjetivação, isto é, do fato de finalmente compreendermos que não somos mais como o que fomos algum dia e que jamais seremos novamente como agora somos.
Mas, para alguns artistas contemporâneos, diferir não é apenas um princípio, é, sobretudo, tática. Levando ao paroxismo as máximas de Gabriel de Tarde – “existir é diferir” e “durar é mudar” −, Yuri Firmeza investe a criação na reinvenção de si como criador.
Quando tudo está comprado ou vendido, resta a tática de mudar – mudar de rosto, mudar de roupa, mudar de prática − para não ser aprisionado nas facilidades do reconhecimento. Diferir para evitar acomodações, sobrecodificações, assujeitamentos. Mas diferir também para surpreender a si mesmo. Eu sou quem agora?
Numa metáfora escandalosa Deleuze confessou o prazer das enrabadas de pensamento: fazer
filhos pelas costas era o que lhe movia a leitura de um autor admirável. Produzir, a partir dele, à
sua revelia, um outro pensamento, próximo mas diferente.
E eis que Yuri Firmeza faz filhos pelas costas de si mesmo. Como o uróboro que morde a
própria cauda, Firmeza repete sistematicamente o auto enrabamento, como o gesto insistente
de procriar-se, de diferir de si mesmo, segundo um projeto estético-político de tornar-se outro
sempre.
A vida assim vivida, na raridade das referências reconhecíveis, é vida de combate, de guerrilha
solitária que o faz habitar limites: entre o ser e o estar, o presente e o futuro, o continente e o
abismo, a razão e a não-razão.
A arte assim praticada, abdica da velha categoria do estilo, que obsoleta-se ou deverá ser buscado
em outro lugar que não o da repetição de formas e da produção de assinaturas. O estilo em
Firmeza, se sobrou algum, só existe como movimento do pensamento, como sentido político
de seus gestos estéticos, não mais como repetição de um fazer reificado. Somente assim podemos
compreender a multiplicidade de suas ações estéticas, na constelação que compreende
suas proposições, conforme bem afirmou Paulo Herkenhoff.
Ao contrário da extensão, cujas possibilidades de medir são imediatas (o metro, o palmo,
o pé, a braça, etc.), as coisas se complicam com as intensidades. Para começar, há muitas
delas: magnética, elétrica, energética, luminosa, sonora entre outras, mas aqui estamos falando
de intensidades subjetivas, impossíveis de serem medidas, ainda que plenamente perceptíveis.
Temos dificuldade até mesmo para descrever as situações intensas; faltam palavras. − Muito
forte, isso! Às vezes, é o que nos resta dizer. Exatamente porque não podemos contabilizar os
metros de intensidade de nosso amor ou da ira que nos consome, ou as quantas braças faltam
para transformar aquela dor em gozo (que o digam os ascetas). No entanto, mais do que a
extensão mensurável, é difícil nos equivocarmos na avaliação da intensidade, ou seja, de saber
o quanto esta ou aquela situação é dolorosamente intensa, prazerosamente intensa, repugnantemente
intensa ou apenas indiferente, intensidade zero. Isto porque se trata de uma vibração
que percorre o corpo, fazendo dele o suporte da percepção. O cérebro, ainda que parte desse
mesmo corpo, sobrevalorizado pelo iluminismo ocidental como lugar do pensamento e do
espírito por excelência, entra em cena a posteriori ou, quando muito, participa da percepção
devolvido a apenas um lugar entre outros, ao Corpo sem Órgãos de que nos falam Deleuze e
Guattari.
Em Europa, filme de Lars Von Trier de 1991, que trata do pós-guerra (segunda) na Alemanha,
encontramos um modo de por em relevo algumas intensidades, tornando-as ainda mais intensas
do que pareceriam ser ao expectador sem o engenhoso artifício: a película é toda em p&b
mas, em raros e cruciais momentos, a cor (especialmente os tons avermelhados) emerge como
se dela vazasse a contrapelo, na forma, por exemplo, do rubor que rapidamente colore o rosto
de Katharina (Barbara Sukowa), em contrariado esforço para esconder seus dois segredos: o
político e o amoroso.
Essa coloração extemporânea, que denuncia a emergência de intensidades, propõe uma situação
interessante para pensarmos a vida: de como ela só é suportável graças a essas colorações
intempestivas que invadem a existência − às vezes parcimoniosamente, às vezes, como enxurrada
− sempre marcada pela rotina, pelos gestos e atos repetitivos, pela vida ligada no automático.
As intensidades são prova de vida. Sejam elas trágicas, dolorosas, insuportáveis, sejam elas
extasiantes, epifânicas, amorosas, delicadas ou pacificadoras. Passaremos por elas, ou melhor,
seremos atravessados por elas, uns mais, outros menos. Com maior ou menor sorte teremos,
enfim, nossa cota de intensidades, como revelou-nos a sua, Proust, em seu Tempo Redescoberto.
Se há algo que podemos dizer da arte contemporânea (alguma arte, ao menos) é esse desafio
das intensidades. Dessa operação de criar situações (mais que obras) em que o rubor
nos sobe à face, em que uma vibração percorre o corpo, em que se produz um estado de vida
em oposição à catatonia das coisas mortas (não da morte pois esta, propriamente, parece ser
intensa), se valem as proposições estéticas e os trabalhos expostos neste encontro de quatro
artistas em Conexão Nacional.
Intensidades vertiginosas: o mundo como caderno de desenho
Adir Sodré é, sobretudo, desenhista, como foram os antigos viajantes naturalistas, mas de um
modo novo. Ao contrário dos primeiros, não se trata de desenhar verossimilmente a fauna
e a flora do mundo natural, como catalogação infinita, mas de tomar o mundo como página
branca e reinventar a criação.
Suas mãos pedem lápis, pedem caneta, pedem uma superfície lisa sobre a qual possa executar
uma dança ininterrupta, sem obstáculo de textura, sem atrito, de voluta em voluta, de linha
em linha, vertiginosamente, obsessivamente. Dessa dança nascem faunas-floras híbridas, não
naturais, contra-naturais, genitálias mistas macho-fêmeas, vaginas-flores carnívoras, frutostetas
intumescidas, passaralhos psicodélicos e outros seres dessa imageria fantástica e borbulhante.
Brotam da ponta do lápis como de uma cornucópia, numa profusão sexual de criação
e recriação de um mundo particular, pleno, sem espaço para o nada ou o indiferente, intenso,
sodresiano como só ele sabe ser.
Intensidades delicadas: o mundo como bordado e poema
Enquanto os desenhos de Adir emergem do papel feito geração espontânea, as palavras-bordados
de Flavia Vivacqua custam a sair. É outro o ritmo, são outras as sensações. Da vida em
tempo lento, cosida ponto a ponto, letra a letra da palavra que ela própria é poema. Do indizível,
tece Flavia com a paciência daquilo que tem o tempo do universo. Nesse trânsito entre linha
e letra, entre tessitura e escritura, entre bordado e poema, somos surpreendidos por saber-nos
ser aquele que trança a lã da vida, que traça/tece o texto singular de sua existência (com palavras
felizes e tristes), ao mesmo tempo em que somos linha, apenas, em uma complexa urdidura
na qual se entrelaçam tudo o que é vivo, na geração também espontânea das formas do
mundo que se repetem e se reinventam, autopoieticamente.
Intensidades de vizinhança: o mundo como ateliê de costura
Algo que os poetas sabem como ninguém é costurar palavras pelos sons, inventando pontes por sobre abismos de signos, antes estranhos entre si. Augusto de Campos costura em VIVA A VAIA imagem, sonoridade e sentidos. Ao modo de um poeta concretista, Gervane de Paula
constrói pontes, costura vizinhanças entre personagens e objetos, matérias e práticas de mundos distintos, abismos de natureza como a mulher e o espelho, o cabelo e o pente, o pente e o dente, a agulha e o pincel, a pintura e o vestido, o pintar e o coser...
As obras de Gervane costuram contiguidades de imagem, matéria e sentido como nos insólitos
jogos de palavras lavradas por poetas, fabricando pinturas-poemas, costuras-pinturas e outros experimentos.
Das cores de sua palheta matriz − vermelho e verde (complementares), branco e preto (excludentes)
− e das matérias que forjarão as proximidades − tela, tinta, tecido, lata, borracha e madeira – organiza-se o mundo deste ateliê de costura que tem na mulher vaidosa e no tuiuiú insistente seus personagens mais do que conhecidos, seus modelos, por assim dizer.
Corpo desmaterializado pelo vermelho; espelho buraco branco e pente-dente em preto de
mulher vaidosa. Afinal, qual é o pente que te penteia, nega?
Pela gola, tuiuiú sedento, bico apenas, mergulha em corpo-vestido de mulher, em direção ao
sul. Mas, quando a manga-tesoura se descola da tela, ganha volume e nome de vestido, pede a
quem o vê um corpo que o porte, qual parangolé. O artista, enfim, é um costurador.
Intensidades políticas: o mundo como diferença
Diferentemente do regime identitário que preconizava sujeitos reproduzindo-se ao infinito, favorece-nos o contemporâneo, com alguns prejuízos e sofrimentos certamente, o princípio da heterogênese da subjetivação, isto é, do fato de finalmente compreendermos que não somos mais como o que fomos algum dia e que jamais seremos novamente como agora somos.
Mas, para alguns artistas contemporâneos, diferir não é apenas um princípio, é, sobretudo, tática. Levando ao paroxismo as máximas de Gabriel de Tarde – “existir é diferir” e “durar é mudar” −, Yuri Firmeza investe a criação na reinvenção de si como criador.
Quando tudo está comprado ou vendido, resta a tática de mudar – mudar de rosto, mudar de roupa, mudar de prática − para não ser aprisionado nas facilidades do reconhecimento. Diferir para evitar acomodações, sobrecodificações, assujeitamentos. Mas diferir também para surpreender a si mesmo. Eu sou quem agora?
Numa metáfora escandalosa Deleuze confessou o prazer das enrabadas de pensamento: fazer
filhos pelas costas era o que lhe movia a leitura de um autor admirável. Produzir, a partir dele, à
sua revelia, um outro pensamento, próximo mas diferente.
E eis que Yuri Firmeza faz filhos pelas costas de si mesmo. Como o uróboro que morde a
própria cauda, Firmeza repete sistematicamente o auto enrabamento, como o gesto insistente
de procriar-se, de diferir de si mesmo, segundo um projeto estético-político de tornar-se outro
sempre.
A vida assim vivida, na raridade das referências reconhecíveis, é vida de combate, de guerrilha
solitária que o faz habitar limites: entre o ser e o estar, o presente e o futuro, o continente e o
abismo, a razão e a não-razão.
A arte assim praticada, abdica da velha categoria do estilo, que obsoleta-se ou deverá ser buscado
em outro lugar que não o da repetição de formas e da produção de assinaturas. O estilo em
Firmeza, se sobrou algum, só existe como movimento do pensamento, como sentido político
de seus gestos estéticos, não mais como repetição de um fazer reificado. Somente assim podemos
compreender a multiplicidade de suas ações estéticas, na constelação que compreende
suas proposições, conforme bem afirmou Paulo Herkenhoff.
